Por André Peixoto de Souza
Ele sequestrou, estuprou várias vezes ao longo de dois dias inteiros, torturou no decorrer desses dois dias, matou, esquartejou e escondeu os seus pequenos restos mortais numa vala, no meio de um bosque imenso e bastante afastado.
Comoção pública inigualável na pequena comunidade da região metropolitana de Curitiba. Vários dias, dias inteiros, em absolutamente todos os programas de TV. Em apenas três dias de investigação tudo veio à tona: a autoria confessa, o corpo, a improvável explicação.
Na verdade, nenhuma explicação. Apenas uma passividade típica de qualquer distúrbio que nem por isso conduz à inimputabilidade. Era seu tio e, inexplicavelmente, agiu como agiu. Prisão temporária. Requisitos toscos.
Imprescindibilidade para investigações. Porém, as investigações já findaram. O tio confessou; mostrou o corpo; explicou tudo; cedeu amostras de DNA; tudo. Nada há mais que ser investigado.
Foi devidamente identificado e possui residência fixa, a mesma há pelo menos uma década.
É certo que há fundada razão de autoria em vários tipos elencados pela regra da prisão temporária. Pelo menos três: homicídio doloso, sequestro, estupro. O problema desse terceiro critério da prisão temporária é a inexistência de justificativa. A regra é seca. Muito mais se coaduna, no entanto, à garantia da ordem pública na prisão preventiva. Ou, no mínimo, à elaboração e apreciação de prisão preventiva, nos seus respectivos – e também insuficientes – três requisitos.
Portanto, fica esvaziada a prisão temporária, no estrito sentido da norma.
Seja como for, é evidente que a prisão preventiva foi requerida e imediatamente decretada, mediante conversão da temporária ainda no seu primeiro prazo.
Garantia da ordem pública foi, como sempre, confundida com comoção pública, com segurança pública. Até mesmo com a brutalidade do crime. Contudo, afinal, jamais a “ordem pública” foi definida pela lei. Nada mais é que uma interpretação, uma apreensão subjetiva de quem porta a caneta em gabinete. O caso concreto, horrendo e deveras midiatizado, chocou a comunidade. Mas a prisão do algoz não garante a ordem pública. Sua soltura também não. A rigor, essa prisão nada tem a ver com “ordem pública”. Pois a “ordem pública”, que a lei ainda não definiu, é algo maior e mais estrutural. Abalar a ordem pública é desestruturar o eixo de toda a sociedade, é atingir um todo indissociável à comunidade. A individual transgressão normativa não abala a ordem pública. Ordem pública é, afinal, justiça! Todavia, é sabido que após a transgressão, não haverá justiça. Haverá, no máximo, prestação jurisdicional, através da pena. Não é justo que o algoz seja punido. Por que não é justo? Porque essa não é uma questão “de justiça”. Justo era, pois, inexoravelmente, que a vítima ainda estivesse entre nós. Enquanto não houver definição ou delimitação de ordem pública, esse é um requisito que não se sustenta filosófica ou processualmente.
Conveniência da instrução criminal. Nesse caso, inquérito excepcionalmente maduro, qual a razão de prender para preservar a instrução criminal? Nada mais poderia o tio manipular, alterar. Há confissão, há filmagens, há duas ou três testemunhas certeiras, há material genético abundante do tio no corpo da vítima. Aqui, a prisão não justifica a garantia da instrução criminal.
Assegurar a aplicação da lei penal. Aplicação da lei penal diz respeito ao cumprimento da pena. Cumprimento de pena remete a condenação. Prender para garantir o cumprimento da pena é antecipar a condenação. É, portanto, inconstitucional. Mesmo que haja confissão, farta prova, tipificações rigorosamente adequadas à conduta do agente, ainda assim não houve condenação. Há, antes de tudo, o devido processo legal. Só no seu término é que se pode dizer em condenação e, por conseguinte, em “aplicação da lei penal”.
Nos três requisitos da prisão preventiva o tio passa incólume. Não há ordem pública a ser garantida com sua prisão. Desnecessária é a sua prisão para preservar a instrução da ação penal. E inconstitucional é a prisão para antecipar uma condenação e, via de consequência, a execução penal.
Diante de todo o quadro, e – agora sim – após o devido processo legal, o acusado foi condenado. A condenação foi confirmada em segunda instância e o trânsito em julgado foi posto. Pena, em suma: 36 anos de reclusão, a se iniciar em regime fechado. Considerando o caráter hediondo do crime, sua progressão ocorrerá em aproximadamente 14 anos. O acusado estará 14 anos na penitenciária. Após isso, semiaberto e aberto respectivamente.
Cabe reflexão sobre esses 14 anos de jaula.
Qual será a função do enjaulamento? Em que essa matemática objetiva poderá contribuir com a pretensa justiça, com a evolução da sociedade, com a melhoria do indivíduo? Após 14 anos enjaulado, terá o condenado se (re) habilitado ao “bom convívio” social?
Dirá o senso comum: esse estuprador assassino merece apodrecer na cadeia! Os mais radicais (ou mais influenciáveis) responderão com pena de morte! E, afinal, a cadeia se sustenta na lei.
Perseguir incansavelmente essa polêmica e tensa reflexão, essa resposta, no desiderato de criar uma alternativa à prisão (em todos os seus sentidos) será a principal missão desse subscritor e dessa coluna no glorioso Canal Ciências Criminais para 2018. E assim nos despedimos de 2017, desejando boas festas e um próspero ano novo!
Fonte: https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=8746406432771806927#editor/target=post;postID=1037448706198377190
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